23.4.07

the fountain

Fazia frio, eu não tinha a menor vontade de me levantar. Estiquei o braço para uma prateleira e peguei um livro que trouxera e do qual gostava muito: os poemas de Mallarmé. Li lentamente, ao acaso; fechei-o, tornei a abri-lo, deixei-o de lado. Nesse dia, pela primeira vez, tudo isso me pareceu sem sangue, sem odor nem sabor, sem substância humana. Pelavras de um azul-desbotado, vazias, soltas no ar. Uma ´gua destilada, perfeitamente pura, sem micróbios, mas também sem conteúdo nutritivo. Sem vida.
Como nas religiões que perderam sua inspiração criadora os deuses se tornaram apenas motivos poéticos ou ornamentos decorativos da solidão humana – e das paredes –, assim era esta poesia. A aspiração veemente do coração cheio de terra e de sementes transformou-se num impecável jogo intelectual, uma arquitetura aérea, erudita e complicada.
Tornei a abrir o livro e recomecei a leitura. Por que esses poemas me empolgaram durante tantos anos? Pura poesia! A vida transformada em jogo lúcido, transparente, nem sequer pesada como uma gota de sangue. O elemento humano é carregado de desejo, é turvo e impuro – amor, carne, lamento. Que se sublime, pois, a idéia abstrata e, no alto-forno do espírito, de alquimia em alquimia, se imaterialize e se dissipe!
Como todas aquelas coisas, que outrora tanto me fascinaram, naquela manhã pareciam apenas acrobacias charlatanescas! Sempre, no declínio de todas as civilizações, é assim que se acaba a angústia do homem, como nos jogos de prestidigitador, cheios de maestria – poesia pura, música pura, pensamento puro. O último homem que se libertou de qualquer crença ou ilusão, que nada mais espera e em nada mais crê – vê a argila de que é feito reduzida a espírito; e o espírito não tem mais onde lançar suas raízes para sugar e se nutrir. O último homem esvaziou-se; nem sementes, nem excrementos, nem sangue. Todas as coisas se tornaram palavras; todas as palavras, artifícios musicais. O último homem vai ainda mais longe: senta-se no topo de sua solidão e decopõe a música em mudas equações matemáticas.
Tive um sobresalto e exclamei para mim mesmo: "Buda é o último homem! Eis aí o seu sentido secreto e terrível. Buda é a alma pura que se esvaziou; nele está o Nada, ele é o Nada. 'Esvaziai vossas entranhas, esvaziai vosso espírito, esvaziai vosso coração!', grita ele. Onde pisar, não brota mais água, não cresce erva, não nasce uma só criança. É preciso", pensei, "citá-lo, mobilizando as palavras encantadas, apelando para a cadência mágica, e lançar-lhe um feitiço que o faça cair de minhas entranhas! É preciso que, para me livrar, eu o prenda na rede das imagens!"

(Nikos Kazantzakis, Zorba, o Grego)



If I started from the top
And worked my way down
There'd be no reason
To live forever

The starvation has turned
Me outside in
And the wind has blown
Me halfway across the world
Across the world

Why was I born
In an age of distrust
I'd offer some change
For a photograph
It will always be the same
You will always be the same

Until I show desire for revenge
My heart never once went astray
As long as I have to die in the attempt
Then there'll be no reason
To live forever

(Dream Theater, To Live Forever)



Era necessário dizer algo sobre esse filme, ainda que não fossem de minha autoria. O que nós realmente queremos? O mito da vida eterna, do amor que supera a vida (por æons)...no fundo, o amor por nós mesmo e nosso apego pela vida.

A eterna pergunta lançada no vazio da noite





por que existo?





Tudo o que fazemos para ocupar nossa (curta) estada nessa hospedaria na curva no universo, todas as tentativas de deixar uma marca para a posteridade (Kilroy esteve aqui), todas as cerimônias, todoas as glórias, todo o dinheiro...nada disso realmente importa, não quando comparado ao ato de criar. Deus é tudo aquilo que nos impele a continuar, seja uma pessoa, uma idéia, um conceito, uma ideologia, uma causa, uma coisa. Não existem ateus.

Amar (mesmo quando não somos correspondidos) é criar.

2 comentários:

  1. Procurei alguém que dissesse algo assim, e encontrei você. Que bom encontrá-lo. Não te conheço, mas sinto que é um amigo. Valeu!

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