31.3.08

fábula

“Um dia, Homem e Mulher começaram uma viagem pela Terra. Era uma Terra nova, desconhecida para ambos, e para não se perderem Eles amarraram em torno do peito um fino fio de prata que, embora tivesse duas pontas, era infinito. Não amarraram de nó, mas apenas enrolaram o peito com o fio, como se cada um fosse um carretel.

Por algum tempo, tudo correu bem e Eles aproveitaram a viagem em todos os seus aspectos. Nem sempre viajavam juntos, muitas vezes se separando por alguns dias, vendo lados diferentes de uma montanha, por exemplo, de maneira a poderem contar um ao outro o que viram, adquirindo, assim, uma visão mais completa das coisas.

Mas, um dia, Homem começou a sentir uma coceira e um queimar no peito, e percebeu que, aos poucos, o fio da sua ponta da linha era, aos poucos, puxado. Intrigado, comentou com Mulher, imaginando que uma parte do fio talvez tivesse ficado presa em um galho e o estava puxando, mas Mulher nada disse. E no dia seguinte, seguiram viagem.

Nos dias que se seguiram, Homem continuava sentindo o fio sendo puxado, se desenrolando de seu corpo. Depois de algumas noites, Mulher o procurou e disse que teria – queria – viajar por lugares em que Ele não poderia ir, mesmo que quisesse. ‘Muito bem’, disse Homem, ‘então vá você. Eu seguirei por outros lados, e nos encontraremos a cada mudança de Lua.’ A viagem seguiu curso, mas o fio ficava cada vez mais minguado no peito de Homem e, a cada vez que se encontravam, ele constatava e comentava o quanto havia cada vez menos fio em torno de seu peito, que agora já mostrava queimaduras. Uma noite, Mulher assentiu em anuência e contou que Ela estava recolhendo o fio, porque este a atrapalhava em sua peregrinação pelos lugares onde Ele não podia ir.

‘Bem, e o que faremos?’, perguntou Ele. ‘Não sei’, disse Ela.

Por mais uma mudança de Lua eles se separaram e Homem pensou muito a respeito. Quando de novo se encontraram, disse: ‘Se você precisa mesmo ir por esses caminhos, vá. Quando você terminar o que precisa fazer, siga o fio e chegará onde eu estiver’. Doía para Homem dizer essas coisas, mas era necessário. Quem sabe, assim, o fio parasse de queimar.

Ela assentiu com a cabeça, aparentemente triste. Eles se olharam bem, e se separaram.

Naquele dia, pela primeira vez, os sons da Terra assustaram Homem. Com a aproximação da noite, ele resolveu se refugiar numa caverna que encontrou por trás de uma queda d’água. Como era frio! Ele se dizia que era por causa da água mas, no fundo, sabia que não era assim.

No dia seguinte, saindo da gruta e vendo Sol e Lua no céu juntos, Homem resolveu contar a eles sua história na Terra e pedir conselho. Depois de ouvir a narrativa, Sol disse: ‘Você é Homem, caçador, matador, transformador. Você não cria. Assim, não tente criar coisas, aja como é de sua natureza e as coisas seguirão seu devido rumo.’ Intrigado, Homem olhou para Lua que, depois de algum tempo, disse: ‘Mulher, por outro lado, cria, mas não transforma. Talvez você não tenha lhe dedicado tributos o suficiente.’ Homem sorriu ante a obliqüidade de Lua. Após alguns momentos de silêncio, ambos disseram: ‘Mas a Terra é muito distante de nós e nossa visão das coisas da Terra, diminuída. Certos detalhes se perdem. Você deve buscar orientação com aqueles que aí vivem.’ Agradecendo a ambos, Homem seguiu viagem a esmo, esperando encontrar alguma criatura que pudesse ajuda-lo.

Um dia, encontrou Esfinge, que vivia em companhia de Fauno. Contando-lhes sua história, Homem sorriu ao final, dizendo: ‘Eu já não sei o que fazer. Reconheço a necessidade do que fiz, mas também percebo que não posso deixar as coisas paradas. Nada no mundo fica parado.’

Esfinge disse: ‘Quando se está cosendo uma roupa e erramos no processo, o que fazemos?’.

Homem, que nunca havia pensado em costura, pensou por alguns minutos e disse: ‘Acho que... recolhemos o fio e começamos de novo...?’

Esfinge sorriu – um sorriso que tinha algo de ameaçador, como se fosse engoli-lo – e disse: ‘E o que acontece com a peça que cosíamos antes?’

Homem empalideceu, quase como se Esfinge lhe houvesse acuado contra uma árvore e fosse agora devorá-lo. Então, Fauno disse: ‘Ela age como se fosse você. Aja como se fosse ela’, concluiu, com um sorriso um tanto malicioso.

Homem agradeceu a ajuda e seguiu seu caminho. Alguns dias depois Homem e Mulher se encontraram, quase por acaso. Conversaram um pouco sobre os lugares por onde haviam caminhado e, depois de algum tempo, finalmente chegaram ao ponto que ambos queriam evitar e, ao mesmo tempo, onde queriam chegar. Ele disse: ‘Isso não está funcionando para mim, a Terra não foi feita para viajar assim. Então, aqui eu me despeço de você. Faço votos de que nos encontremos algum dia, mas...’. Mulher, mirando por sobre o fogo da fogueira, se mantinha distantemente próxima, e disse: ‘Você merece companhia para essa viagem.’ Homem sorriu amargamente, como quem diz ‘e, no entanto, não a tenho.’ Depois de muito silêncio, Homem se levantou para ir embora quando Mulher disse: ‘Já não tenho recolhido o fio!’. Homem parou na beira da luz do fogo: ’Que bom, isso é bom. Mas, nesse momento, é preciso de mais do que simplesmente não recolher’, disse, e foi embora.

Dias se passaram e Homem encontrou Centauro cavalgando pela floresta. Depois de conversarem sobre todas as coisas que haviam visto, Homem contou sua história e esperou enquanto Centauro cavoucava a terra com seus cascos, esgravatando um talo de grama na boca enquanto pensava.

Finalmente, disse: ‘Você agiu corretamente, fez o que precisava fazer. Mas, se acabar por se afastar demais, o fio lhe escapará por completo.’ Homem disse que sabia, e não ia – não queria – deixar que o fio se escapasse de seu peito. No entanto, não podia ficar a mercê de algo que estava totalmente fora de seu controle.

Naquela noite, Homem chegou a um grande lago, onde acampou. Enquanto jantava, Sapo veio falar com ele. Conversaram muito e Sapo perguntou porque Homem parecia tão sorumbático. E Homem lhe contou sua história. E aqui estamos nós.”

Tudo isso disse Homem a Sapo, que anuiu com seus olhos abertos refletindo o céu refletido no lago. ‘Você escolheu o caminho mais difícil’, ele disse. ‘Poucos vão por aí’. Dito isto, saltou de volta ao lago e sumiu na noite.

Quando ficou sozinho, Homem repensou em tudo o que havia acontecido, desde aquele dia em que acordaram juntos na Terra, ele e Mulher. E reviveu muitas coisas, coisas boas e ruins, paisagens bonitas e feias. E sorriu e chorou pelas memórias que se haviam acumulado. Lembrando de todas essas coisas, desenrolou o final do novelo de seu peito e o amarrou no pulso direito.

Foi quando se viu refletido no lago. E seu reflexo perguntou: ‘Por quê continuar amarrado a isso?’

Homem respondeu: ‘Porque eu lutei demais por meus sonhos para desistir deles assim, tão fácilmente.’

3 comentários:

  1. Nunca tinha visto você escrever um conto e, realmente, surpreendeu. As imagens são muito bonitas e delicadas e a paisagem, de maneira geral, soturna, delicada e esfuma_çada/sante [de nuvens e neblina], conferindo ao texto um caráter ora onírico, ora surrealista.
    Além disso, a linha e suas nuances, desdobramentos e fragilidade, é a perfeita e sutil condutora que amarra todo texto.
    De alguma maneira, desde o início, me lembrou alguns trechos de Dolls.
    ---
    Nice one. Muito bom mesmo e meus Parabéns, rapaz. Continue trilhando os árduos caminhos e você será e já está sendo recompensando, como dizem os velhos ditados.
    abs e forças.

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  2. "Porque eu lutei demais por meus sonhos para desistir deles assim, tão fácilmente"

    Hermoso, triste y muy cálido. Me gustó mucho aún sin entenderlo todo (mejor, siempre algo escapándose al entendimiento)
    Abrazos

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  3. Alguém deveria ilustrar tudo isso para ti! Ficaria lindo.
    Gostei muito.

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