18.3.13

síndrome de cyrano

Tem dias em que tudo dá certo.

O trabalho rende, novos clientes te procuram, o papo com os amigos flui bem e a cerveja está na temperatura certa. Você (re)encontra pessoas e, quem sabe, pode até se dar conta que está perdidamente apaixonado por alguém ou algo. Dias em que o mundo ao seu redor te conta segredos não tão secretos (quando se sabe parar para admirar as flores) e tudo parece conter a chave para aqueles mistérios que só as crianças conhecem.

Ainda assim, à esses dias se contrapõem outros, em que quase nada dá errado - mas aquela uma coisa que faltou parece tornar-se indispensável à manutenção da vida, e vira um buraco negro para toda cor em volta.

...

No meu mundo, os dias me contam histórias, transcorrem caudalosamente em som e fúria, HD e 8.1 surround sound.

São as noites, a entrada na madrugada, que quase me fazem temer pela sanidade que já questiono se ainda é minha.

Não pelo vazio na casa, ou na cama.

Pelo vazio na alma.

14.1.13

the show must go on

Parece que, por vezes, a faca de dois gumes é cega. O corte, na expectativa dolorosamente agudo, se torna algo opaco e mudo. Tudo dói de forma difusa, como encarar o céu gris-nublado por detrás do qual se perde o sol. Há que se apertar os olhos na tentativa de dar mais definição (ou resolução).

Agora, o nublado perpétuo, cinza-chumbo paulistano se abre em torrencial chuva. Perdido entre as reverberações dessa militude de gotas, ouço ecos da vida lá fora que me fazem pensar no velho adágio que afirma: "olhar para as estrelas é olhar para o passado". Consonantemente, ouvir os ecos e reverberações é ouvir o que se foi... e, se se for atento, medir a distância de tempo que separa tal oitava de sentimentos e determinar quantos harmônicos reverbera(ra)m. Creio que, como na acústica, quanto maior a distância percorrida pelas oitavas, maior a riqueza entre elas.

Tal noção me conforta, uma quasi-anestesia; permite que o cego serrar termine sua grave tarefa e deixe o sol entrar, quando as cortinas dos dilúvios sasonais se abrirem tal qual cortinas teatrais para o início do espetáculo.

20.1.12

o que é bom pra indústria é bom pra você? e pro artista?

was megaupload bad for the creative industries?

o artigo, do jornal Guardian, apresenta dois argumentos, pró e contra pirataria. no entanto (curiosamente?), os argumentos contra pirataria (defendidos por Frances Moore, chefe do IFPI) não justificam a postura isolacionista da indústria cultural. 



a defesa mais utilizada é a de que, por causa da pirataria, artistas deixam de criar (por falta de dinheiro), pessoas são demitidas e empresas deixam de existir ("The music business was the first creative industry to be hit by digital piracy. Thousands of artists have suffered, hundreds of thousands of employees have lost their jobs and many labels have disappeared") – e tal defesa é, na minha opinião, risível. 


falando como músico, não sei de nenhum artista/banda que tenha deixado de produzir por conta disso. o único que se aproximou de tal postura foi Prince e, ao que me consta, o fez para ter controle total de sua produção, retirando suas obras de catálogo inclusive da própria indústria. 


pessoas são demitidas. mas, numa economia em crise (qualquer que seja), a cultura é sempre a primeira a sofrer. governos deixam de investir na área para priorizar os essenciais (saúde, educação e produção, não necessariamente nessa ordem, nem de fato) e, consequentemente, indústrias deixam de investir em novas criações. consequentemente, perdem-se empregos. mas, a indústria cultural não reclama disso.

selos/empresas deixam de existir. é verdade. no entanto, quando uma empresa grande compra um pequeno selo e descontinua o catálogo do tal selo, ninguém da indústria reclama – e isso acontece com mais frequência do que se imagina.



*************


verdade seja dita, Frances acerta em uma coisa. ela diz: "First, you cannot fund creativity by taking away the rights of creators to be paid. Second, just look at who is benefiting from "free". We cannot be fooled by opportunists hiding behind seemingly lofty principles to feather their own nests".


ou seja, não há criatividade quando os direitos dos criadores (mas isso também se aplica à indústria, quando esta não paga devidamente seus contratados e explora artistas iniciantes). mas, o discurso sobre liberdade de acesso não pode servir para enriquecimento. a indústria não pode continuar lucrando os absurdos que têm lucrado, mas um site (ou qualquer outro recurso que seja) que se propõe a "liberar" tal produção não pode faturar, pelas mesmas razões.


************


o cerne da questão é: o artista não recebe o que deveria. em qualquer língua, em qualquer época (do século xx em diante), se encontra argumentos de que "arte é um negócio para se perder dinheiro", supostamente porque nem sempre gera "produtos". será? 

18.1.12

a SOPA, a PIPA, e outros objetos curiosos

quando a china fez, reclamou-se.

quando o irã anunciou que iria fazer, reclamou-se.

agora, os eua querem fazer. e, felizmente, está-se reclamando.

a internet é um espaço livre, não se pode – nem se deve – tentar limita-lo. mais iimportante ainda, não se deve fazê-lo disfarçado de proteção ao direito de propriedade intelectual.

por que?

porque direitos autorais não são a principal fonte de renda de nenhum criador. mas, curiosamente, são a principal fonte de renda das indústrias culturais e científicas. precisamos aceitar a função da criação na sociedade contemporânea e discutir, sim, maneiras de preservar os direitos dos criadores (que fique claro que tenho objeções tanto ao modelo de copyright quanto ao de copyleft). os criadores têm direito a ficarem incomodados com o excesso de pirataria que sofrem, principalmente por meio da internet, mas não têm direito de limitarem o meio por conta dos usuários. todavia, os usuários ainda têm que fazer sua parte em reconhecimento ao trabalho artístico que lhes agrada.

essa legislação que se propõe nos eua – SOPA na câmara dos deputados, PIPA no senado – afeta toda a comunidade mundial. se o bater de asas de uma borboleta no pacífico pode causar um furacão do outro lado do mundo, o que dizer do bater de asas de um dragão. tais legislações nos afetam a todos. por isso, temos que prestar atenção não só ao que está acontecendo lá, mas também às suas versões já existentes em outros países e regimes, bem como para que projetos semelhantes não venham a ser propostos aqui.




muitos sites, blogs e afins entraram em blackout mode, em protesto aos projetos de lei. outros, apresentam textos sobre o tema. seja qual for a sua forma preferida, não deixe de se pronunciar.


3.11.11

...and so I'm back from outer space (you just walked in to find me here with that sad look upon my face)

pois bem... 3 anos e 3 meses depois, cá estamos nós. eu tentei não falar mais de coisas chatas e ser um cara legal. aprendi a sorrir, a não levar as coisas tão a sério, a não entrar em qualquer discussão pelo mero prazer de discutir, a não comprar briga a troco de banana... mas, como tudo que é bom dura pouco (e eu não tenho mais palavras pra dizer te amo), chega.

esses dias estive lendo uma entrevista com um especialista na área energética (entrevista, aliás, que teve um trabalho jornalístico surpreendentemente bom!), tive uma epifania às avessas. já faz muito tempo que venho falando que tem muito mais em jogo do que vemos/percebemos. a gente descobre alguma coisa, que pode ser uma banda, um livro, um filme, uma entrevista, uma pesquisa (e assim por diante), vai no gúgle, joga os dados lá e, confiando na máquina, clica nos primeiros links que aparecem – e não questionamos o resultado. claro, na maioria das vezes, é algo inócuo e objetivo, é fácil saber se a gente acho o que procurava. mas, quando o que buscamos se refere à conteúdo de informação (política, economia, textos críticos), a porca torce o rabo e, invariavelmente, aceitamos informações superficiais (tem até algumas pesquisas sobre isso – http://www.wired.com/magazine/2011/11/st_thompson_searchresults/). ou seja, não pensamos – ou não muito, pelo menos. uma vez "iluminados", saímos pelas redes sociais afora arrotando opiniões mal-digeridas de terceiros, sem nem tentar juntar os pontos e ver qual a imagem que se forma.

voltemos à entrevista com o tal especialista. ele fala sobre como toda a construção de belo monte atende a interesses outros que não a geração de energia, interesses de construtoras, empreendedoras, políticos e quetais (ok, até aí, nada de novo); ele fala do estranho que é um governo que se diz voltado às minorias e aos menos favorecidos atropelar todo o tipo de oposição para executar a tal hidrelétrica (ainda nada de novo); mas ele também fala, de forma bem detalhada, sobre como, no atual esquema das coisas, belo monte só produzirá 4300 megawatts (bem longe dos 11200 megawatts apregoados pelo governo) e que, pra chegar aos tais 11200, o governo teria que construir outras 4 usinas.

e esses são os primeiros pontos.

daí a gente ouve falar do futuro plebiscito, que ocorrerá dia 11/12/2011, sobre a divisão do estado do pará (possivelmente em 3 partes: pará, carajás e tapajós). e fica sabendo que, se a tal divisão sair por inteiro e tivermos 3 estados onde antes tinha 1 só, o ponto de encontro entre eles será próximo da cidade de altamira, que fica mais ou menos no centro do estado e que é onde ficará – adivinhem – a hidrelétrica.

e mais alguns pontos são ligados.

então, tem a demissão do megaron txucarramãe da funai – que implica ignorar uma fonte de contato direta com as populações indígenas do xingú.

e fechar os ouvidos aos relatórios técnicos, aos avisos da oea.

(mais outros pontos – já dá pra ver o elefante branco?)


pois então...e daí, a presidenta vai lá pra cannes fazer a imagem do país – que cada vez mais carece de infra-estrutura (em todos os aspectos), cada vez mais produz bens primários e importa bens de valor agregado produzidos com matéria-prima brasileira, que cada vez mais se afunda em escândalos de corrupção – e a gente "tem" que ficar feliz que o brasil tá crescendo e todo aquele blábláblá. não acho que brincar de occuppy wall street versão tupiniquim (occupy esplanada? occupy paulista? occupy av. brasil?) seja desnecessário. pelo contrário, acho que é um passo necessário – principalmente se não for uma coisa manipulada como com os caras-pintadas. mas sei que não se pode parar por aí.

dando um salto por analogia, é como disse tom service em seu excelente blog sobre música clássica no guardian (http://www.guardian.co.uk/music/tomserviceblog/2011/nov/03/paul-hamlyn-awards-speech): estamos fazendo algo, mas estamos na beira do abismo. precisamos fazer mais. precisamos exigir mais. precisamos estar mais atentos ao que acontece. precisamos compartilhar essas informações. precisamos parar de gastar 5 minutos fazendo um photoshop básico pra divulgar na nossa rede social predileta falando mal de x ou de y, e usa-los para entrar em contato com nossos representantes e fazê-los saber que estamos prestando atenção.

precisamos parar de elogiar v de vingança e começar a fazer por onde. a "revolução", como bem se sabe, não sabe andar sozinha.

*************

PS: pra quem ficou curioso, a tal entrevista está aqui: revistaepoca.globo.com/Sociedade/noticia/2011/10/belo-monte-nosso-dinheiro-e-o-bigode-do-sarney.html

PPS: sou só eu quem acha estranho o fato de que, passados quase 1 ano de sua saída da presidência, as opiniões de nosso ex-presidente ainda sejam tão importantes – por vezes parecendo mais importantes que as da atual presidenta?

27.7.08

culpabilidade

(Para LS)

“Ser atéia me permite o nada, e nada é como os prédios da avenida Paulista.”
*************
“Os prédios apodrecem e caem; essa é uma qualidade que Deus nunca terá(…)”

Sei não…tantas vezes vemos (ou melhor, ouvimos falar) de divindades antigas, que deixaram de existir. Neil Gaiman fala muito bem sobre isso. Todos falam sobre isso, aliás, mas poucos falam bem. Afinal, nosso mundo não quer assumir que quer um/uns deus/deuses – mas também não pode viver sem ele(s).

Eu sempre achei que os deuses são como nós (e, por consequência, como os prédios): eles não existiam até que, um dia, lá estão. E um dia, deixarão de estar. Eles (prédios e deuses) existem enquanto nós precisamos deles. Depois que perdem sua utilidade, são demolidos/implodidos/erodidos. Eles (pessoas e deuses) existem enquanto precisamos deles. Depois que perdem sua utilidade, dizemos que foram uma fantasia da nossa cabeça. Eles (pessoas e prédios) existem enquanto precisamos deles. Depois que perdem sua utilidade, nos esquecemos deles.

Deus (singular/masculino por conveniência) nos criou?

Ou nós o criamos?

Se somos assim tão imperfeitos, como criamos um deus tão perfeito?

Transferência de culpa?

25.4.08

Plágio


Pensei muito em coisas que tinha para dizer...e cheguei a conclusão que Trent Reznor escreveu as palavras que eu queria, e Johnny Cash interpretou-as do jeito que eu queria.

HURT

I hurt myself today
To see if I still feel
I focus on the pain
The only thing that's real
The needle tears a hole
The old familiar sting
Try to kill it all away
But I remember everything

What have I become
My sweetest friend
Everyone I know
goes away
in the end
And you could have it all
My empire of dirt
I will let you down
I will make you hurt

I wear this crown of thorns
Upon my liar's chair
Full of broken thoughts
I cannot repair
Beneath the stains of time
The feelings disappear
You are someone else
I am still right here

What have I become
My sweetest friend
Everyone I know
goes away
in the end
And you could have it all
My empire of dirt
I will let you down
I will make you hurt

If I could start again
A million miles away
I would keep myself
I would find a way

http://www.youtube.com/watch?v=SmVAWKfJ4Go

*************
É curioso notar como a dor é uma constante. A gente se distrai, se diverte, se enfurna no trabalho...mas, na hora em que paramos pra fumar um cigarro, tomar um ar, relaxar, lá vem ela, inopinadamente, (como diria Calvin, vem "como as mães, sorrateiramente por trás da moita").

21.4.08

Other People

"Time is fluid here," said the demon.

He knew it was a demon the moment he saw it. He knew it, just as he knew the place was Hell. There was nothing else that either of them could have been.

The room was long, and the demon waited by a somiking brazier at the far end. A multitude of objects hung on the rock-gray walls, of the kind that it would not have been wise or reassuring to inspect too closely. The ceiling was low, the floor oddly insubstantial.

"Come close," said the demon, and he did.

The demon was rake thin and naked. It was deeply scarred, and it appeared to have been flayed at some time in the distant past. It had no ears, no sex. Its lips were thin and ascetic, its eyes were a demon's eyes: they had seen too much and gone too far, and under their gaze he felt less important than a fly.

"What happens now?" he asked.

"Now," said the demon, in a voice that carried with it no sorrow, no relish, only a dreadful flat resignation, "you will be tortured."

"for how long?"

But the demon shook its head and made no reply. It walked slowly along the wall, eyeing first one of the devices that hung there, then another. At the far end of the wall, by te closed door, was a cat-o'-nine-tails made of frayed wire. The demon took it down with one three-fingered hand and walked back, carrying it reverently. It placed the wire tines onto the brazier, and stared at them as they began to heat up.

"That's inhuman."

"Yes."

The tips of the cat's tails were glowing a dead orange.

As the demon raised its arm to deliver the first blow, it said, "In time you will remember this moment wth fondness."

"You are a liar."

"No," said the demon. "The next part," it explained, in the moment before it brought down the cat, "is worse."

Then the tines of the cat landed on the man's back with a crack and a hiss, tearing through the expensive clothes, burning and rending and shredding as they struck, and, not for the last time in that place, he screamed.

There were two hundred and eleven implements on the walls of that room, and in time he was to experience each of them.

When, finally, the Lazarene's Daughter, which he had grown to know intimately, had been cleaned and replaced on the wall in the two hundred and eleventh position, then, through wrecked lips, he gasped, "Now what?"

"Now," said the demon, "the true pain begins."

It did.

Everything he had ever done that had been better left undone. Every lie he had told–told to himself, or to others. Every little hurt, and all the great hurts. Each one of them was pulled out of him, detail by detail, inch by inch. The demon stripped away the cover of forgetfulness, stripped everything down to truth, and it hurt more than anything.

"Tell me what you thought as she walked out the door," said the demon.

"I thought my heart was broken."

"No," said the demon, without hate, "you didn't." It stared at him with expressionless eyes, and he was forced to look down.

"I thought, now she'll never know I've been sleeping with her sister."

The demon took apart his life, moment by moment, instant to awful instant. It lasted a hundred years, perhaps, or a thousand–they had all the time there ever was, in that gray room–and toward the end he realized that the demon had been right. The physical torture had been kinder.

And it ended.

And once it had ended, it began again. There was a self-knowledge there he had not had the first time, which somehow made everything worse.

Now, as he spoke, he hated himself. There were no lies, no evasions, no room for anything except the pain and the anger.

He spoke. He no longer wept. And when he finished, a thousand years later, he prayed that now the demon would go to the wall, and bring down the skinning knife, or the choke-pear, or the screws.

"Again," said the demon.

He began to scream. He screamed for a long time.

"Again," said the demon, when he was done, as if nothing had been said.

It was like peeling an onion. This time through his life he learned about consequences. He learned the results of things he had done; things he had been blind to as he did them; the ways he had hurt the world; the damage he had done to people he had never known, or met, or encountered. It was the hardest lesson yet.

"Again," said the demon, a thousand years later.

He crouched on the floor, beside the brazier, rocking gently, his eyes closed, and he told the story of his life, re-experiencing it as he told it, from birth to death, changing nothing, leaving nothing out, facing everything. He opened his heart.

When e was done, he sat there, eyes closed, waiting for the voice to say, "Aain," but nothing was said. He opened his eyes.

Slowly he stood up. He was alone.

At the far end of the room, there was a door, and as he watched, it opened.

A man stepped through the door. There was terror in the man's face, and arrogance, and pride. The man, who wore expensive clothes, took several hesitant steps into the room, and then stopped.

When he saw the man, he understood.

"Time is fluid here," he told the new arrival.



"Other people" foi publicado no livro "fragile things" de Neil Gaiman.

13.4.08

espelho

Havia já algum tempo que ele estava ali, parado, defrontando-se no abismo que se abria adiante. A paisagem – para trás variada – parecia monótona do outro lado da garganta. A vontade de cruzar era grande, mas a distância era demasiada e não havia maneira de atravessar aquela imensidão negrejante, noturna, chopiniana.

Então, piano súbito, todo o sentimento de uma vida soou, pungente como a cavalgada das valquírias – e, no entanto, fugidio como a tarde de um fauno –, manifesto em todo corpo, se misturava, extendia, expandia pelos quatro horizontes. A garganta se moveu, abrindo e fechando como que pela primeira vez, o esforço descomunal fazendo a terra tremer como uma amante.

E da garganta sopraram lágrimas da chuva, num suspiro.

*************
Para EIB, pela sua força.

31.3.08

fábula

“Um dia, Homem e Mulher começaram uma viagem pela Terra. Era uma Terra nova, desconhecida para ambos, e para não se perderem Eles amarraram em torno do peito um fino fio de prata que, embora tivesse duas pontas, era infinito. Não amarraram de nó, mas apenas enrolaram o peito com o fio, como se cada um fosse um carretel.

Por algum tempo, tudo correu bem e Eles aproveitaram a viagem em todos os seus aspectos. Nem sempre viajavam juntos, muitas vezes se separando por alguns dias, vendo lados diferentes de uma montanha, por exemplo, de maneira a poderem contar um ao outro o que viram, adquirindo, assim, uma visão mais completa das coisas.

Mas, um dia, Homem começou a sentir uma coceira e um queimar no peito, e percebeu que, aos poucos, o fio da sua ponta da linha era, aos poucos, puxado. Intrigado, comentou com Mulher, imaginando que uma parte do fio talvez tivesse ficado presa em um galho e o estava puxando, mas Mulher nada disse. E no dia seguinte, seguiram viagem.

Nos dias que se seguiram, Homem continuava sentindo o fio sendo puxado, se desenrolando de seu corpo. Depois de algumas noites, Mulher o procurou e disse que teria – queria – viajar por lugares em que Ele não poderia ir, mesmo que quisesse. ‘Muito bem’, disse Homem, ‘então vá você. Eu seguirei por outros lados, e nos encontraremos a cada mudança de Lua.’ A viagem seguiu curso, mas o fio ficava cada vez mais minguado no peito de Homem e, a cada vez que se encontravam, ele constatava e comentava o quanto havia cada vez menos fio em torno de seu peito, que agora já mostrava queimaduras. Uma noite, Mulher assentiu em anuência e contou que Ela estava recolhendo o fio, porque este a atrapalhava em sua peregrinação pelos lugares onde Ele não podia ir.

‘Bem, e o que faremos?’, perguntou Ele. ‘Não sei’, disse Ela.

Por mais uma mudança de Lua eles se separaram e Homem pensou muito a respeito. Quando de novo se encontraram, disse: ‘Se você precisa mesmo ir por esses caminhos, vá. Quando você terminar o que precisa fazer, siga o fio e chegará onde eu estiver’. Doía para Homem dizer essas coisas, mas era necessário. Quem sabe, assim, o fio parasse de queimar.

Ela assentiu com a cabeça, aparentemente triste. Eles se olharam bem, e se separaram.

Naquele dia, pela primeira vez, os sons da Terra assustaram Homem. Com a aproximação da noite, ele resolveu se refugiar numa caverna que encontrou por trás de uma queda d’água. Como era frio! Ele se dizia que era por causa da água mas, no fundo, sabia que não era assim.

No dia seguinte, saindo da gruta e vendo Sol e Lua no céu juntos, Homem resolveu contar a eles sua história na Terra e pedir conselho. Depois de ouvir a narrativa, Sol disse: ‘Você é Homem, caçador, matador, transformador. Você não cria. Assim, não tente criar coisas, aja como é de sua natureza e as coisas seguirão seu devido rumo.’ Intrigado, Homem olhou para Lua que, depois de algum tempo, disse: ‘Mulher, por outro lado, cria, mas não transforma. Talvez você não tenha lhe dedicado tributos o suficiente.’ Homem sorriu ante a obliqüidade de Lua. Após alguns momentos de silêncio, ambos disseram: ‘Mas a Terra é muito distante de nós e nossa visão das coisas da Terra, diminuída. Certos detalhes se perdem. Você deve buscar orientação com aqueles que aí vivem.’ Agradecendo a ambos, Homem seguiu viagem a esmo, esperando encontrar alguma criatura que pudesse ajuda-lo.

Um dia, encontrou Esfinge, que vivia em companhia de Fauno. Contando-lhes sua história, Homem sorriu ao final, dizendo: ‘Eu já não sei o que fazer. Reconheço a necessidade do que fiz, mas também percebo que não posso deixar as coisas paradas. Nada no mundo fica parado.’

Esfinge disse: ‘Quando se está cosendo uma roupa e erramos no processo, o que fazemos?’.

Homem, que nunca havia pensado em costura, pensou por alguns minutos e disse: ‘Acho que... recolhemos o fio e começamos de novo...?’

Esfinge sorriu – um sorriso que tinha algo de ameaçador, como se fosse engoli-lo – e disse: ‘E o que acontece com a peça que cosíamos antes?’

Homem empalideceu, quase como se Esfinge lhe houvesse acuado contra uma árvore e fosse agora devorá-lo. Então, Fauno disse: ‘Ela age como se fosse você. Aja como se fosse ela’, concluiu, com um sorriso um tanto malicioso.

Homem agradeceu a ajuda e seguiu seu caminho. Alguns dias depois Homem e Mulher se encontraram, quase por acaso. Conversaram um pouco sobre os lugares por onde haviam caminhado e, depois de algum tempo, finalmente chegaram ao ponto que ambos queriam evitar e, ao mesmo tempo, onde queriam chegar. Ele disse: ‘Isso não está funcionando para mim, a Terra não foi feita para viajar assim. Então, aqui eu me despeço de você. Faço votos de que nos encontremos algum dia, mas...’. Mulher, mirando por sobre o fogo da fogueira, se mantinha distantemente próxima, e disse: ‘Você merece companhia para essa viagem.’ Homem sorriu amargamente, como quem diz ‘e, no entanto, não a tenho.’ Depois de muito silêncio, Homem se levantou para ir embora quando Mulher disse: ‘Já não tenho recolhido o fio!’. Homem parou na beira da luz do fogo: ’Que bom, isso é bom. Mas, nesse momento, é preciso de mais do que simplesmente não recolher’, disse, e foi embora.

Dias se passaram e Homem encontrou Centauro cavalgando pela floresta. Depois de conversarem sobre todas as coisas que haviam visto, Homem contou sua história e esperou enquanto Centauro cavoucava a terra com seus cascos, esgravatando um talo de grama na boca enquanto pensava.

Finalmente, disse: ‘Você agiu corretamente, fez o que precisava fazer. Mas, se acabar por se afastar demais, o fio lhe escapará por completo.’ Homem disse que sabia, e não ia – não queria – deixar que o fio se escapasse de seu peito. No entanto, não podia ficar a mercê de algo que estava totalmente fora de seu controle.

Naquela noite, Homem chegou a um grande lago, onde acampou. Enquanto jantava, Sapo veio falar com ele. Conversaram muito e Sapo perguntou porque Homem parecia tão sorumbático. E Homem lhe contou sua história. E aqui estamos nós.”

Tudo isso disse Homem a Sapo, que anuiu com seus olhos abertos refletindo o céu refletido no lago. ‘Você escolheu o caminho mais difícil’, ele disse. ‘Poucos vão por aí’. Dito isto, saltou de volta ao lago e sumiu na noite.

Quando ficou sozinho, Homem repensou em tudo o que havia acontecido, desde aquele dia em que acordaram juntos na Terra, ele e Mulher. E reviveu muitas coisas, coisas boas e ruins, paisagens bonitas e feias. E sorriu e chorou pelas memórias que se haviam acumulado. Lembrando de todas essas coisas, desenrolou o final do novelo de seu peito e o amarrou no pulso direito.

Foi quando se viu refletido no lago. E seu reflexo perguntou: ‘Por quê continuar amarrado a isso?’

Homem respondeu: ‘Porque eu lutei demais por meus sonhos para desistir deles assim, tão fácilmente.’

21.1.08

pequena gota adejante ao balde

era uma vez uma pessoa, numa janela iluminada pela luz que vinha de dentro do cômodo, num edifício de uma grande cidade. é difícil dizer o que ela pensava naquele momento, se estava feliz ou triste, se era homem ou mulher. melhor nos atermos ao fato de que era uma pessoa.
ela – a pessoa – olhava para fora e via a cidade, esse mar de luz roubada dos céus, que criava constelações imóveis esparramadas pelo chão. se ela – a pessoa – se concentrasse bastante, conseguia mesmo converter os sons urbanos em ecos da música das esferas que cruzava o cosmo e chegava à nossa “pequena gota adejante ao balde”. e como vivia no alto, encarapitada numa colagem de blocos de pedra e areia, a mercê dos ventos e das chuvas, conseguia – por um instante – se sentir em queda-livre pelo espaço, girando e deixando-se levar pela inércia através das ondas concêntricas criadas pelas reverberações espaciais.
e se perdia em si mesma, confundindo-se com o entorno. trasbordando-se, ela, em sua pessoacidade, era tudo que existe, vibração sinergética de som e luz, dentroforadentrando em si mesma tudo o que é. ela era o todo (e) aparte, cons-trução-ciência de si mesma por outros.
e como vivia no alto, encarapitada numa colagem de blocos de pedra e areia, a mercê dos ventos e das chuvas, conseguia, por um instante, se sentir em queda-livre pelo espaço, girando e deixando-se levar pela inércia através das ondas concêntricas criadas pelas reverberações espaciais. se ela – a cidade – se concentrasse bastante, conseguia mesmo converter os sons dessas pessoas em ecos da música das esferas que cruzava o cosmo e chegava à essa “pequena gota adejante ao balde”. ela – a cidade – olhava para fora e via as pessoas, esse mar de luz roubada dos mares, que criava constelações móveis esparramadas pelo chão.
melhor nos atermos ao fato de que era uma cidade. é difícil dizer o que ela pensava naquele momento, se estava feliz ou triste, se era costeira ou de montanha. edificada, uma grande cidade, uma janela iluminada pela luz que vinha de dentro dos cômodos, era uma vez uma cidade.

24.12.07

Nósa lingua portugeza?

Mi pergunto cual a heal nesesidadi dji incorporarmus as letras K, W i Y au nóssu alfabetu. Ecétu enh palavras derivadas dji linguas estranjeiras i inh nómis próprius, éssas letras nãu sãu utchilizadas na nóssa lingua nem hepresentam sons fonétchicus nóvus, já ci K cohespondji au nóssu C; W, au V; i Y, ao I. Aliáis, meu cestionamentu vai aleinh dissu: cual a heal hazãu dji ainda falarmus portugeis nu Brazil, au invés dji brazileiru?

Sim, á us fatoris políthchicus. Nu ci toca à pulítchica esterna, principalmeintchi acela ci si referi a organizasõis internasionais, é supostameintchi interesantchi ci u Brazil integri o grupu dus paízis luzófonus, dando asinh djistaci i relatchiva inhportânsia à ésa lingua na ONU, por ezemplu. Mais uma das hazõis alegadas para a heforma ortográfica propósta nesi anu seria u hidjículu da nesesidadji, oji, dji documentus internasionais serem hedjijidus inh dois padrõis djiferentchis dji portugeis: o BR (Brazil) i o PT (Portugal), inh funsãu da djiscrepânsia entri as duas linguas. Óra, isu mi paresi mais um argumentu para uma separasãu definitchiva das linguas du ci para ci si fasãu auterasõinhs para unificar ambus us padrõinhs.

Isu mi leva a considerar a maneira comu screvemus nósa lingua. É heclamasãu constantchi u baishu níveu ezibídu pur jóveinhs einh hedasõinhs dji vestchibular i graduasãu. Claro ci nãu si pódji djisconsiderar u papel ci u sucatchiamentu da educasãu nasionau teinh nesi fenômenu, mais isu é tema para outru testu. U ci mi shama mais a antensãu nesi fenômenu é uma pergunta ci ouvi amiúdji dji alunus dji nível fundamentau, médjiu i superior: purque utchilizamus a mesma letra para sons djiferentchis?

Tomandu pur bazi u falar paulistanu, temus as vogais E (as vezis pronunsiada comu I) e O (as vezis pronunsiada comu U). Entri as consonantchis, temus a letra C cumprindu sounh dji C i dji S (aleinh do Ç, ci tein sounh dji S); a letra D ci, dependendu du cazu, teinh sounh dji D ou DJ; a letra G, counh sounh dji G i dji J; a letra H, ci num teinh sounh própriu; a letra M, ci muitas vezis é pronunsiada comu N; a letra Q, ci só é utchilizada susedjida de U (QU) i teinh sounh dji C; a letra R, ci teinh variasãu dji sounh entri R i RR, aleinh dji variar u sounh si prezentchi nu iníciu ou nu meiu da palavra (o R einh iníciu dji palavra poderia ser substchituídu pelo H, por ser mais aspiradu, conservandu seu sounh para o R einh meiu dji palavra); a letra S cumprindu sounh dji S i dji Z; a letra T, ci varia dji sounh si susedjida dji A, E, O, U (TA, TE, TO, TU) ou I (TCHI); a letra X, ci teinh sounh dji CH (ci, por sua veis, nãu teinh u sounh ci deveria ter i deveria ser escritu SH, comu na palavra “sharópi”) ou Z (comu einh “ezeinhplu”). Us asentus agudu ( ´ ) i sircumflecsu ( ˆ ) neinh seinhpri cohespodeinh às auterasõinhs sonoras, postu ci muinhtas vezis falamus E comu É (i vice-versa).

Mi parési claru ci nósa grafia tomou unh humu completameinhtchi djifereinhtchi da nósa fala. A justchificatchiva para ci uma palavra seja scrita cum S ou C ja nãu teinh pur bazi u eventu sonoru, convertendu-si numa abstrasãu da abstrasãu. I esa grafia, somada à defisiênsia das hedjis dji ensinu, ajuda a piorar u níveu ortográficu nasionau.

Intendu ci uma mudansa brusca nas hegras ortográficas criaria muinhtus problemas imedjiatus indezejáveis. Á muitus falantchis da lingua já abituadus às hegras prezentchis i uma mudansa tãu profunda nãu seria beinh hesebida pur forsar muinhta jentchi a heaprender a screver. Mais u problema está na má grafía ou na má estruturasãu dos testus? Nãu seria ese unh cazu einh ci é nesesáriu “cebrar u ovu para fazer uma omelétchi”? Será ci ese sacrifísiu nãu seria, nu finau, benéficu? Ou seria tudu isu uma grandji piada?

30.10.07

the elsewhere prince

E aqui se encerra uma era.

26 anos bem vividos.

Quando souber se tenho algo mais a dizer, aviso vocês.

Beijos e abraços a todos.